Sobre o inexplicável da natureza humana

Um artigo “a frio” no JN. Uma tentativa de reflexão e de ir mais além dos impactos e julgamentos iniciais. Interessante.

O drama dos pais que matam acidentalmente

Em menos de uma semana, Portugal trouxe às páginas dos jornais seis acidentes graves com crianças. Todos tristes, todos absolutamente trágicos. Mas na memória colectiva – em silêncio – permanece um, pela amargura dos seus contornos. Um pai, como qualquer outro pai, esqueceu o seu bebé dentro do carro.

Horas depois, deparou-se com o pior cenário que um pai pode enfrentar, que se estende sob a acusação surda de uma sociedade inteira.Nos cafés, no mercado, numa qualquer repartição pública, nas escolas, na televisão, não faltaram logo opiniões completamente formadas, fechadas e “perfeitas” sobre o sucedido. Parecia que dentro de quem opinava o caso tinha que ser resolvido e afastado com carácter de urgência.

Explicam os especialistas que, na impossibilidade de integrarmos um determinado acontecimento no nosso sistema, buscamos uma resposta rápida para fecharmos o ciclo. De facto, o que não faltou foi rapidez e de tudo se ouviu. Ouviu-se que “não estamos livres que nos aconteça, porque também somos pais” e ouviu-se que “àquele pai faltava-lhe o vínculo de amor”. Houve mesmo quem questionasse a razão pela qual a sua mulher não o largou. Para uns vítima, para outros algoz.

Assim, imediatamente. Tudo para fecharmos o ciclo e avançarmos com a nossa vida que, pensamos nós, está distante dessas tragédias. Avisam os especialistas que não é assim, que somos humanos e que nunca nada está completamente controlado. Portanto, à pergunta ‘como pode um pai (ou uma mãe) esquecer-se de um filho dentro de um carro?’ segue-se uma outra para fazer devagar: poderá isto acontecer a qualquer um de nós?. E, já agora, será um drama desta natureza, individual e com contornos únicos e íntimos, apenas um sintoma da vida do protagonista? Ou poderá ser também – além da sua dimensão única e deveras íntima – o sintoma de uma realidade social?

Quando nós entramos em falência…

“Pode. Pode ser um sintoma da nossa realidade social. E dou-lhe o exemplo da radicalização a que chegaram as exigências laborais. Esta radicalização influencia a estrutura familiar e pode potenciar as tragédias, os acidentes”, explicou Manuel Sarmento, sociólogo e membro do Instituto de Estudos da Criança (IEC), da Universidade do Minho. Significa isto que as pessoas andam hoje muito mais cansadas, muito mais preocupadas, a “viverem a um ritmo acelerado, que não é o delas”, pormenoriza Paula Cristina Martins, Psicóloga e também membro do IEC.

A psicóloga alerta para o facto de que “os indivíduos privilegiam os filhos no seu discurso, mas que é o trabalho que as domina, relegando as relações e os afectos para segundo plano”. Não é que gostem menos das suas pessoas e muito menos dos filhos, é só que por imposição da própria vida “têm menos disponibilidade de tempo e menos disponibilidade mental porque estão cansadas”, diz.

Esta radicalização das exigências feitas ao indivíduo cria as condições que propiciam os estados ansiosos. Basicamente, está criada a plataforma para que o nosso aparelho psíquico nos traia, “porque estamos pressionados, debaixo de um quadro de stress”, acrescenta Manuel Coutinho, psicólogo e secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança.

“Quando uma pessoa tem muita pressão sobre ela e a sua atenção está demasiado distribuída podem acontecer acidentes trágicos”, reitera Manuel Coutinho. Não é raro encontrarmos pessoas que estão à procura dos óculos com eles na cabeça, ou que chegam a casa do trabalho sem se lembrarem de nada relativamente ao percurso efectuado. Tudo sinais de cansaço. No fundo, há uma espécie de falência temporária. Quando esta falência se dirige a um filho, pode ser trágica, mas “pode não ter havido negligência consciente”, afirma. “A negligência consciente existe quando os pais facilitam num qualquer comportamento que sabem que poderá vir a ter más consequências”, determina.

Reformulamos, então, a pergunta de partida. Em vez de questionarmos como pôde um pai esquecer-se de um filho no carro, questionarmos apenas por que esqueceu ele o filho no carro.

Quando a memória nos trai

A psicóloga Paula Cristina Martins avança com um exercício. “Imagine, por exemplo, que não é hábito levar o filho ao infantário e que a criança vinha a dormir. Imagine, ainda, que o pai, ou a mãe, estão completamente absortos porque preocupados com uma reunião de trabalho”.

Serve isto para demonstrar que tendo os seres humanos comportamentos automatizados, bastará um quadro de preocupação para não processar a mudança na rotina diária. E, portanto, julgar depressa “é não compreender”, entende o psicólogo Manuel Coutinho. “Aos pais a quem acontece um acidente destes, onde não houve dolo, já basta serem julgados na sua consciência, independentemente de serem julgados no tribunal dos seus países. Um infortúnio destes fica para toda a vida. Nada tem que ver com a ausência de vínculos afectivos, mas com momentos de infortúnio, onde os pais por qualquer motivo, como o excesso de cansaço, baixaram a guarda de forma não intencional”, defende aquele especialista.

A resposta a quem disse, por exemplo, que “estas pessoas não deviam ter filhos” está dada. “Estas pessoas” somos nós, todos nós, “porque todos nós estamos sujeitos a uma falência temporária”, avisa. De facto, as estatísticas de países onde estes casos não são raros indicam que tal acontece a ricos e pobres, a pessoas altamente escolarizadas e a outras pouco qualificadas, a pais mais controladores e aos pais mais permissivos, aos mais preocupados e aos mais distraídos, aos mais inseguros, aos mais equilibrados e aos que pensam que são perfeitos e que têm sempre um conselho e uma sentença na ponta da língua. Nos Estados Unidos da América, país onde um caso destes sucede entre 15 a 25 vezes por ano, já aconteceu a um militar, a uma assistente social, a um clérigo protestante, a uma enfermeira, a um professor universitário, a um cientista, a uma pediatra, bem como a um trabalhador dos correios, a um electricista a um cozinheiro, enfim, a gente de todos os feitios e de todos os tipos sócio-económicos.

À pergunta: ‘poderá isto acontecer a qualquer um de nós?’, Manuel Coutinho responde categoricamente. “sim, por isso é muito importante estar alerta o mais possível, porque às vezes toda a vigilância é pouca, já que numa fracção de segundos, pode acontecer uma tragédia”.

A visibilidade da infância

E sobre tragédias que envolveram crianças intensificaram-se as notícias em Portugal, nos últimos cinco anos. Realidade extensiva a toda a Europa, de resto. Esta visibilidade centra-se nos acidentes, que é a segunda causa de morte na infância; nas notícias sobre maus-tratos, em larga medida devido ao trabalho de sensibilização das comissões de protecção de menores; e na pobreza infantil, que os relatórios da Eurostat revelam estar a aumentar.

“Esta visibilidade é paradoxal. As crianças passam a ser visíveis quando são menos, isto é, nasceram menos um milhão de crianças entre 1981 e 2005 do que até então. Do ponto de vista demográfico isto é muito importante pelas suas consequências. Portanto, obrigatoriamente começou a dar-se visibilidade à infância. A outra grande razão desta visibilidade prende-se com o aprofundamento, no século XX, desta concepção de que a criança é um sujeito de direitos”, informou o sociólogo Manuel Sarmento. Ou seja, quando a lei consagra que a criança é um sujeito de direitos e a realidade demonstra que está cada vez mais pobre, por exemplo, colocam-se os olhos na infância. Resumidamente, a criança passa a ser tema pelo lado mais crítico.

“Sim, é uma visibilidade parcial, que assenta precisamente no lado crítico. É o observar a ruptura existente entre o que é esperado e a realidade social. Tudo, porque no fundo, nós temos a esperança que a criança seja o futuro da humanidade, e em Portugal que consiga representar um país mais emancipado”, explica o sociólogo. Esta ideia de futuro está ligada à ideia de renascimento social, sobretudo na sequência das duas grandes guerras.

Mas, se por um lado, a infância tem cada vez mais visibilidade, por outro lado nem sempre é tratada como deveria. As exigências da sociedade quotidiana não deixam grande tempo para que a família se aperceba do ritmo a que os comportamentos da infância se alteram e da forma como esta se relaciona como Mundo. Os pais estão submersos num mundo de exigências laborais que fomentam, muitas vezes, a corrosão de carácter. Essa instabilidade influencia directamente a estabilidade familiar. Por isso, de facto, a pressão a que o sujeito se sente submetido – o facto de se sentir dominado pelo trabalho, que é o seu ganha-pão para sustentar os filhos que ama – pode potenciar o cansaço e a desatenção.

Como lidar com a tragédia

O cansaço e a atenção muito distribuída são os detonadores de uma eventual tragédia, de um acidente onde não houve negligência consciente. “Quando esta acontece, o pai ou a mãe em causa vai sofrer de forma tenebrosa o resto da vida. É algo muito pesado aceitar o facto de a responsabilidade do que sucedeu ser sua”, resume a psicóloga Paula Cristina Martins, acrescentando que “o protagonista de um drama destes precisa de todo o apoio terapêutico”.

“Um pai a quem acontece uma coisas destas vai ter um processo de luto agravado pelo sentimento de culpa, tem que ser ajudado através da psicoterapia”, avança o psiquiatra Daniel Sampaio. Apesar de este pai viver com a memória do que aconteceu a vida toda, ele pode com o tempo encontrar alento para viver.

A primeira coisa que um especialista fará no acompanhamento a este pai é “tentar perceber os seus mecanismos habituais de defesa para, num segundo passo, reforçá-los”, explica o psiquiatra. Um terceiro passo será tentar encontrar na vida daquela pessoa uma motivação para viver o melhor possível.

“No caso de haver já outros filhos, convém não transportarem para eles nada do que possa acontecer, ou seja, não terem comportamentos de super-protecção. Por outro lado, convém não virem a ter outro bebé nos próximos dois anos, para que este não seja encarado, ainda que inconscientemente, como um substituto”, adverte ainda este psiquiatra.

Por outro lado, o outro cônjuge, a sofrer um trauma duplo, pela morte do filho e pelo facto de tal ter acontecido sob responsabilidade de quem também ama, precisa, igualmente, de todo o apoio. “O casal precisa de apoio e precisa de conversar muito. É importante que este cônjuge não culpabilize o outro”, termina Daniel Sampaio.

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